O papel de Nossa Senhora na história da Salvação

“[A Sagrada Escritura] apresenta a Virgem Maria intimamente unida ao Filho divino e sempre solidária com Ele. Mãe e Filho aparecem estritamente associados na luta contra o inimigo infernal até a plena vitória sobre ele”¹. Do primeiro ao último livro da Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse, Nossa Senhora está sempre ligada – segundo o desígnio do Pai Celeste – ao Filho redentor e a ele inseparavelmente unida para arrancar os homens ao poder de Satanás. “Depois do pecado original, Deus voltou-se para a serpente, que representa satanás, amaldiçoa-a e acrescenta uma promessa: ‘Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela: ela esmagar-te-á a cabeça, ao tentares mordê-la no calcanhar’ (Gn 3,15). É o anúncio de uma vitória: nos primórdios da criação, Satanás parece ter levado a melhor, mas virá um filho de mulher que lhe esmagará a cabeça. Assim, o próprio Deus vencerá, mediante a descendência da mulher. Aquela mulher é a Virgem Maria, da qual nasceu Jesus Cristo que, com o seu sacrifício, derrotou de uma vez para sempre o antigo tentador. Por isso, em muitos quadros ou imagens da Imaculada, ela é representada no ato de esmagar uma serpente sob seus pés”².

A Sagrada Escritura revela-nos que Cristo Senhor é o único Redentor, o único Mediador junto do pai, o único Salvador e Libertador da humanidade do poder de Satanás. Contudo, não está sozinho na batalha contra Satanás, mas com Maria, os anjos bons e os santos. Entre eles, no entanto, sua Mãe tem um papel singular e especial porque, precisamente porque é mãe, coopera, como nenhuma outra criatura com o Filho redentor no mistério da Redenção da humanidade. Embora Maria seja uma criatura redimida (a primeira dos redimidos e da maneira mais sublime), coopera com Cristo de modo único e irrepetível. A cooperação dos cristãos tem lugar depois do próprio evento da Redenção, cujos frutos eles se empenham em difundir mediante a oração e a união da oferta de si com Cristo ao pai. A cooperação de Maria, porém, realizou-se já durante o próprio evento da Redenção, isto é, ao longo da vida terrena do Filho, tendo inclusivamente sido necessário o livre consentimento da futura mãe para que a Redenção se iniciasse.

Se não tivesse dado o consentimento à Encarnação do Filho, Ele não teria podido tomar dela o corpo que ofereceu em sacrifício na Cruz. Além disso, Cristo não subiu ao Calvário para oferecer-se como vítima por nós, sem a livre vontade de Maria. De fato, ela consentiu na Paixão do Filho porque, embora não tivesse podido negar o seu consentimento, pois já estava incluído no que fora dado na Anunciação, pôde confirma-lo aos pés da Cruz. Esse consentimento “dado à imolação de Jesus não constituiu uma aceitação passiva, mas foi um ato autêntico de amor, com que ela ofereceu o seu Filho como vítima de expiação pelos pecados de humanidade inteira”³, para, deste modo, arrancar os homens ao poder de satanás. Aos pés da Cruz, Maria “sofreu profundamente com seu Filho unigênito e associou-se, de coração maternal, ao seu sacrifício, consentindo amorosamente na imolação da vítima que havia gerado”4. Com a Paixão e Morte de Jesus e com a com-paixão de Maria, em cujo coração se reverberou tudo isto que Jesus padeceu na alma e no corpo, satanás foi derrotado. O seu poder e o dos outros anjos rebeldes, de que ele é o chefe e que, com ele e sob ele, formam um reino, foi destruído. Embora continue ativo no mundo – e, por vezes, nas várias épocas históricas, também de maneira muito intensa e evidente –, deixa de ser invencível, enquanto a graça da Redenção, na medida em que é acolhida por nós, nos torna capazes de destruir as obras do diabo.

Essa graça é particularmente reforçada pelo nosso recurso confiante à intercessão especial da Virgem Maria. De fato, pela sua Imaculada Conceição, ela está, no ser e no agir, clara e absolutamente em oposição aos ser e agir de satanás e dos outros anjos rebeldes, totalmente voltada – como nenhum outro ser humano ou angélico – para a neutralização dos ataques demoníacos e para a expansão do reino do filho, que é justiça, paz e alegria no Espírito Santo.

Ela “participa daquele ‘duro combate contra os poderes das trevas…, que se desenvolve durante toda história humana’”5, “colocada no próprio centro daquela inimizade”6 relativamente à serpente, figura de Satanás e dos espíritos do mal de que ele é príncipe, e que será vencido por Jesus Cristo precisamente com a cooperação da Mãe.

Nas palavras dirigidas à serpente: “farei reinar a inimizade entre tia e a mulher” (Gn 3,15), Deus revelou que a mulher, cujo filho haveria de debelar Satanás, haveria de ser juntamente com ele a antagonista do chefe dos demônios e do mundo diabólico. A mulher “que, embora tenha precedido o homem a ceder à tentação da serpente, torna-se, depois, em virtude do plano divino, a primeira aliada de Deus. Eva tinha sido a aliada da serpente ao arrastar o homem para o pecado. Deus anuncia que, subvertendo essa situação, fará da mulher a inimiga da serpente… Quem é esta mulher? O texto bíblico não refere o nome pessoal, mas deixa entrever uma mulher nova, querida por Deus para reparar a queda de Eva; de fato, ela é chamada a restaurar o papel e a dignidade da mulher e a contribuir para a mudança do destino da humanidade, colaborando mediante a sua missão materna para a vitória divina sobre Satanás. À luz do Novo Testamento e da Tradição da Igreja, sabemos que a mulher nova anunciada pelo Protoevangelho7 é Maria e, na estirpe, reconhecemos o Filho, Jesus, triunfador no mistério da Páscoa sobre o poder de Satanás. Observamos também que a inimizade, posta por Deus entre Satanás e a mulher do Gênesis, realiza-se duplamente em Maria. Aliada perfeita de Deus e inimiga do diabo, ela foi subtraída completamente ao domínio de Satanás na sua concepção imaculada, quando foi plasmada na graça do espírito Santo e preservada de toda a mancha de pecado. Além disso, associada à obra salvífica do Filho Maria foi plenamente envolvida na luta contra o espírito do mal. Assim, os títulos “Imaculada Conceição” e “Cooperadora do Redentor”, atribuídos a Maria pela fé e pela Igreja para proclamar a sua beleza espiritual e a sua íntima participação na obra admirável da Redenção, manifestam a oposição irredutível entre a serpente e a nova Eva”8.

A antiga versão latina do Protoevangelho – que diz: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Ela esmagar-te-á a cabeça” (Gen 3,15)9, – “inspirou muitas representações da Imaculada que esmaga a serpente debaixo dos seus pés. No texto hebraico, não é a mulher, mas a sua estirpe, o seu descendente quem calca a cabeça da serpente. Portanto, esse texto atribui não a Maria, mas aos seu Filho a vitória sobre satanás. Todavia, como a concepção bíblica estabelece uma profunda solidariedade entre o progenitor e sua descendência, é coerente com o sentido original da passagem a representação da Imaculada que esmaga a cabeça, não por virtude própria, mas pela graça do Filho. Além disso, no mesmo texto bíblico é proclamada a inimizade entre a mulher e sua descendência, por um lado, e a serpente e sua estirpe, por outro. Trata-se de uma hostilidade expressamente estabelecida por Deus, que assume um relevo singular se considerarmos o problema da santidade pessoal de Virgem. Por ser a inconciliável inimiga da serpente e da sua estirpe, Maria devia estar isenta de todo domínio do pecado, desde o primeiro momento da sua existência. A propósito, a Encíclica Fulgens corona, publicada pelo Papa Pio XII em 1953 para comemorar o centenário a definição do dogma da Imaculada Conceição, argumenta assim: ‘Se, num determinado momento, a Bem-aventurada Virgem Maria ficasse privada da graça divina, porque contaminada na sua concepção pela mancha hereditária do pecado, entre ela e a serpente nunca teria existido – pelo menos durante este período de tempo, mesmo que fosse breve – aquela inimizade de que a tradição primitiva fala até a definição solene da Imaculada Conceição, mas sobretudo uma certa sujeição’ (AAS 45 [1953], 579). Portanto, a hostilidade absoluta estabelecida por Deus entre a mulher e o demônio exige em Maria a Imaculada Conceição, isto é, uma ausência total de pecado, desde o inicio da vida. O Filho de Maria obteve a vitória definitiva sobre Satanás e fez com que dela beneficiasse antecipadamente a Mãe, preservando-a do pecado. Consequentemente, o Filho concedeu-lhe o poder de resistir ao demônio, realizando assim no mistério da Imaculada Conceição o mais notável efeito da sua obra redentora”10.

Portanto, na história da salvação há três grandes protagonistas: Cristo redentor, Maria cooperadora de Cristo e Satanás, seu opositor, que – como já se disse repetidamente –, na Bíblia, é representado pela imagem de uma serpente, mas no curso da história da humanidade, por causa da sua crescente obra maléfica entre os homens, é figurado por um dragão vermelho e sanguinário, para fazer ressaltar a sua ferocidade e crueldade desmesurada em contraposição ao sinal que aparece no céu, da “Mulher vestida de sol”, do capítulo 12 do Apocalipse, que também figura a Virgem Maria. Não nos esqueçamos de que, frequentemente, na Bíblia uma mesma figura pode ter diversos significados. Para os exegetas, “Mulher vestida de sol” representa o povo hebraico e/ou a Igreja e/ou Maria. Mas é precisamente este último significado que prevalece, já que o Filho desta mulher é Jesus. “Ela [a Mulher] dará à luz um filho varão [Jesus Cristo, o Messias], com o destino de governar todas as nações com cetro de ferro” (Ap 12,5). E a sua Mãe, a “Mulher” do Apocalipse, aparece em luta contra Satanás, como Deus já tinha declarado no Gênesis. “Caracterizada pela maternidade, a mulher ‘está grávida e grita com as dores e o trabalho de parto’. Esta observação remete-nos para a Mãe de Jesus junto da Cruz (cf. Jo 19,25), onde ela participa com a alma trespassada pela espada (cf. Lc 2,35), no trabalho de parto da comunidade dos discípulos [isto é, a Igreja]. Apesar dos seus sofrimentos, está ‘vestida de sol’ – isto é, tem o reflexo do esplendor divino – e aparece como sinal grandioso da relação esponsal de Deus com o seu povo. Embora não indiquem diretamente o privilégio da Imaculada Conceição, estas imagens podem ser interpretadas como expressão do cuidado amoroso do Pai que envolve Maria com a graça de C4rsto e p esplendor do Espírito. Finalmente, o Apocalipse convida a que se reconheça mais particularmente a dimensão eclesial da personalidade de Maria: a mulher vestida de sol representa a santidade da Igreja que se realiza plenamente na Santíssima Virgem, por virtude de uma graça singular”11.

À luz de quanto dissemos até agora, compreende-se que os evangelizadores, os pregadores e os catequistas não podem calar-se acerca da “serpente” e do “dragão”: “A evocação da luta contra Satanás deve entrar na dinâmica dos diversos serviços da Palavra; por isso, descer-se-á evitar silenciá-la, talvez, pelo desejo de falar só da Mulher: pôr entre parênteses a figura do Dragão resolver-se-ia num empobrecimento da figura e da Missão da Mulher”12

1 Bento XVI, Angelus de 15 de agosto de 2007.

2 Bento XVI, Angelus de 08 de dezembro de 2009.

3 Cf. João Paulo II, Audiência geral de 03 de abril de 1997.

4 Lumen gentium 58.

5 João Paulo II, Encíclica Redemptoris Mater 47.

6 Ibidem 11.

7 “Protoevangelho” quer dizer “primeira boa-nova” e refere-se ao primeiro anuncio que encontramos na Bíblia: o da vitória definitiva do Messias e da Mulher (Maria) sobre Satanás e sobre as forças do mal [cf. Gn 3,15]. Portanto, é um anúncio que abre para a esperança de salvação a humanidade decaída sob o poder de Satanás depois do pecado.

8 João Paulo II, Audiência geral de 25 de janeiro de 1996.

9 Ao comentar esta passagem, que na versão grega dos Setenta aparece no masculino: “Ele esmagar-te-á a cabeça”, Santo Afonso Maria de Ligório escreve: “Seja como for, é certo que Lúcifer foi derrotado pelo Filho por meio da Mãe, sobre uma aviltante escravidão.” Por isso, o Maligno é sempre obrigado a obedecer às ordens da Rainha como alguém que perdeu a guerra e foi tornado escravo. São Bruno afirma que Eva, ao ser vencida pela serpente, trouxe consigo a morte as trevas, mas a Bem-aventurada Virgem, ao vencer o demônio, deu-nos a vida e a luz. Portanto, Nossa Senhora ligou o inimigo de tal maneira que não pôde mover-se para causar o mais pequeno dano aos seus devotos” (in Le glorie di Maria 2ª edição, Milão, Editrice Ancilla, 1994, parte I, cap. IV, parágrafo 2, p. 157). O texto original de Santo Afonso Maria de Ligório está em Opere Spirituali, Série B, Trattati speciali: Gesù Cristo, Maria SS. E i Santi, vol. V, Le glorie di Marie, c. IV, par. I, Roma-Pagani, Edizione PP. Redentoristi, 1954, pp. 205-206.

10 João Paulo II, Audiência geral de 29 de maio de 1996.

11 Ibidem.

12 M.G.MASCIARELLI, Pio IX e I’Immaculata, Cidade do Vaticano, LEV, 2000, p.73.