O Documentário Francisco

A dolorosa – é um eufemismo – história do documentário Francisco, que monopoliza a atenção da imprensa e dos blogs católicos, não só na área tradicional, já assumiu conotações suficientemente claras e inequívocas para poder extrair, com toda a prudência do caso, mas também com toda a pontualidade necessária, uma primeira série de conclusões. O futuro nos dirá o que mais podemos acrescentar.

Em primeiro lugar, é necessário definir claramente do que se trata.

Um regista – Evgeny Afineevsky, tem uma história profissional muito específica e uma localização cultural muito específica, é partidário do mundo LGBTfaz um documentário sobre o Papa. Este documentário é devidamente lançado, tanto a ponto de provocar o tsunami em que ainda estamos envolvidos.

Atenção: este é um documentário, não, como foi dito apressadamente, uma entrevista. Nesse contexto, portanto, de acordo com a natureza da obra, o autor reúne diversos materiais de acordo com seu programa de comunicação, incluindo alguns trechos de uma entrevista que data de 2019; material montado, mesmo com corte e costura direcionados, para transmitir a ideia clara que o diretor tem do Papa, é uma operação comunicativa legítima, e a maioria dos documentários dedicados a uma personalidade importante são montados assim: então você pode e deve discutir a exatidão do julgamento transmitido, o uso mais ou menos convincente ou apropriado da documentação reunida; as conclusões alcançadas podem ser compartilhadas ou contestadas, pode-se argumentar que não representam adequadamente a realidade, mesmo que a falsifiquem. Mas, dado que o documentário serve justamente para transmitir uma certa visão do personagem, no nosso caso do Papa, o ponto realmente crucial não é que tenha sido construído instrumentalmente para passar aquela certa visão, porque a coisa é, em grande medida, fisiológica. , perceptível e, em suma, tolerável: o documentário não é um estudo científico, mas um trabalho criativo e, portanto, não serve para descrever assepticamente uma realidade histórica, mas, antes, para lhe dar uma interpretação. O ponto crucial é qual é a posição que cada um – a começar pelo interessado – assume a respeito da interpretação do personagem e da leitura de seu pensamento proposta pelo autor.

Diante de tudo isso, procuremos dar o devido peso a todas as circunstâncias e aos elementos úteis para entender o que aconteceu e o que está acontecendo.

Primeiro ponto: deve-se presumir, até prova em contrário, que o regista do documentário entrou legitimamente em posse do material montado. Portanto, também lhe foi concedido legitimamente o trecho em que o Papa fala das uniões civis, embora essa passagem tenha sido cortada da versão “oficial” da entrevista a que pertence. Um romance que o diretor usou conscientemente para um propósito muito específico.

Segundo ponto: o propósito muito específico é transmitir a ideia de um Papa gay-friendly, a favor das uniões civis, mesmo entre homossexuais.

Terceiro ponto: agora é incontestável que o Papa e sua comitiva viram o documentário; também é mais do que óbvio que eles estão cientes tanto do conteúdo da mensagem transmitida (o Papa é gayfriendly e a favor das uniões civis), quanto da tempestade que se seguiu.

Quarto ponto: depois de tudo isso, o documentário foi premiado no Vaticano; além disso, também no Vaticano, o Papa festejou pessoalmente o diretor por ocasião do seu aniversário.

Quinto ponto (na verdade, parece-nos irrelevante, à luz dos precedentes): não houve nenhuma negação, de fato, o teor geral da mensagem foi confirmado por várias personalidades conhecidas por serem próximas do Papa.

Eis, então, as somas que podemos tirar do estado da arte: o documentário – mesmo que tenha reunido o material utilizado de forma instrumental – ainda expressa corretamente o pensamento do Papa, que, com seu comportamento, o ratificou. Portanto, não é crível que se trate de uma falsificação substancial, ou que o Papa não pense nisso como aparece no filme dedicado a ele.

Obviamente, algumas objeções são concebíveis.

Pode-se dizer que o Papa não quis ratificar nada, que foi apenas gentil, compreensivo e acolhedor com o diretor, etc. etc. Vamos supor que seja verdade. Teríamos um Papa totalmente inconsciente das consequências de suas ações. Talvez devêssemos desejar, na verdade devíamos desejar, especialmente para a salvação de nossas almas, mas a situação da Igreja ainda seria humanamente desastrosa.

Também se poderia argumentar que sim, é verdade, o Papa ratificou, mas seu pensamento é completamente ortodoxo, aceitável, correto, compartilhável; ou que, em qualquer caso, sendo o Papa, ele pode dizer e fazer livremente o que quiser, e os fiéis devem se adaptar. Deixamos para outros, competentes no assunto, estabelecer se essa objeção é teologicamente confiável, mas, se não fosse, a gravidade da situação seria mesmo pesada.

Por fim, pode-se argumentar que a doutrina se manteve intacta e que o próprio documentário o prova. Em nossa opinião, o problema da declaração da Congregação para a Doutrina da Fé de 2003 permaneceria; em todo caso, não só a teologia entra em jogo neste ponto, mas também a lógica, de modo que todos podemos ousar dizer algo a respeito. Por exemplo: argumentar que a doutrina não muda, e ser a favor das uniões civis, é dizer que você é palmeirense, mas torcer pelo Corinthians … Mais a sério, é considerar a doutrina e as atitudes concretas na arena social, cultural e política como variáveis independentes, como universos paralelos que nunca se encontram. Olhando mais de perto, é a premissa fundadora de Amoris Laetitia, e constatá-la confirma que o documentário realmente representa o pensamento atual do Papa.

Diante de tudo isso, parece-nos que os católicos de boa vontade não podem mais adotar a estratégia do avestruz: impor-se para não ver, não saber, não compreender. Driblar a realidade não funciona mais. No entanto, graças ao Deus, a realidade inclui também o fato de, como se assinalou com autoridade, não nos depararmos com o magistério, mas com opiniões privadas, não vinculativas e, de fato, questionáveis. Apesar de todos os documentários do mundo, a doutrina não pode mudar e realmente não muda, assim como as consequências não mudam, mesmo no plano sociopolítico e jurídico. Mas nosso coração está partido.