ESPIRITISMO E CATOLICISMO

Os motivos pelos quais o espiritismo alcançou maior difusão no Brasil do que em qualquer outro país do mundo, inclusive na França, onde nasceu em 1857 por Allan Kardec (pseudônimo de Hyppolite Rivail), estudioso dos fenômenos parapsicológicos e autor do Livro dos Espíritos, são variados e complexos. No entanto, também parece claro ao olhar do leigo, a saber, que outra forma de espiritismo já estava presente no Brasil, aquela ligada aos cultos afro-americanos importados por escravos destinados ao trabalho nas plantações de café, algodão e fumo: em particular candomblé, umbanda e macumba, religiões que muitas vezes se entrelaçam a outras crenças e práticas de origem pagã, mais ou menos desajeitadamente disfarçadas em trajes católicos porque, na época, os escravos tinham que tentar disfarçá-las ou torná-las aceitáveis para seus Mestres portugueses.

Todos esses cultos estão centrados no culto aos espíritos, bons e maus, dando origem a práticas difundidas de magia “branca e “negra” e, portanto, criaram, no Brasil, o terreno adequado para acomodar uma doutrina como a de Kardec, em que a evocação de espíritos é o centro de sua própria concepção religiosa. Deve-se notar que Kardec nunca se pronunciou contra o Cristianismo, e em particular o Catolicismo, aliás, ele sempre teve expressões de respeito por Jesus Cristo, acreditando que as sessões e o sistema de crenças ligado a elas, antes de mais nada a reencarnação de almas, não são inconciliáveis com a fé católica; enquanto a Igreja, ao contrário, sempre teve uma opinião completamente diferente e considerou o espiritismo praticado pelos adeptos de Kardec substancialmente da mesma forma que o pagão praticado pelos adeptos da macumba e do candomblé.

O fato é, porém, que morar e trabalhar em um país onde a tendência ao sincretismo religioso é tão forte e enraizada, nem mesmo o clero católico consegue marcar claramente, em todas as circunstâncias, os limites entre uma religiosidade católica “saudável” e uma, ainda que inconscientemente, contaminada e, portanto, heterodoxa. Ambas as franjas mais pobres da população, especialmente o elemento de origem africana, onde a abordagem do fato religioso é essencialmente mais emocional do que intelectual, como acontece, e mais ainda, na África (pense na história desconcertante do Arcebispo exorcista e curandeiro Emmanuel Milingo), bem como os adeptos do kardecismo, que pertencem à classe média ou média alta, brancos e bem educados, e se dedicam ao espiritualismo com a seriedade de uma verdadeira religião, em comum a atração pelo mundo das entidades desencarnadas, e direta ou indiretamente pelo da magia (os africanos procuram especialmente os sacerdotes de suas religiões para se libertarem do mau-olhado, ou para lançá-lo, ou para propiciar um determinado evento) que, do ponto de vista católico, beira ao doentio e é absolutamente desaconselhável porque é perigoso e teologicamente inadequado. Isso não quer dizer que o clero católico, oriundo desse ambiente e dessas famílias, nem sempre consiga ficar imune a alguma forma de contaminação ou, se preferir, sugestão, talvez até inconsciente: algo quase natural num ambiente multiétnico e multicultural, extremamente aberto e receptivo a todas as expressões da vida social, e é constituído por uma grande maioria de jovens, que por sua vez estão inclinados para o novo e descuidando da tradição.

Se me permitem uma nota pessoal. Certa vez, em Brasília (durante um curso de enculturação promovido pela CNBB), o padre jesuíta diretor do Cenfi, que então se casou com sua freira assistente, que nos hospedava, quis nos levar a um rito de exorcismo do culto da Macumba; experiência que então nos foi negada porque, no último momento, a sacerdotisa indígena não foi encontrada em casa. Enquanto isso, porém, um padre católico e até jesuíta, achava perfeitamente natural conduzir padres e leigos de fé católica, que haviam chegado ao Brasil pela primeira vez, a um rito pagão, e os havia conduzido aos bairros mais remotos e desconhecidos de Brasília, aparentemente sem captar a ambiguidade ou imprudência inerente à sua iniciativa. É para dar uma ideia de como o sincretismo e certas formas de animismo e feitiçaria, amplamente presentes no quotidiano popular, neste país “de Santa Cruz” não podem ser contidos dentro de limites precisos nem mesmo para o clero católico. As implicações dessa atitude ajudam a entender eventos como o Sínodo para a Amazônia de 2019, sem falar no repentino aparecimento do culto à deusa Pachamama no Vaticano: coisas, estas, que embora tenham sido orquestradas por uma sábia direção maçônica nas altas esferas, começando por Dom Claudio Hummes, ex-Cardeal de São Paulo e ex-Prefeito da Congregação para o Clero, bem como de quase toda Igreja de Bergoglio, entretanto, esta mentalidade entrou a fazer parte, embora inconscientemente, por uma não pequena parte do clero sul-americano, justamente pela presença arraigada naquele contexto cultural de fortes sugestões espiritualistas, tanto indígenas quanto kardecistas.

Cito uma página do conhecido escritor britânico do paranormal Guy Lyon Playfair, Magia brasiliana (1976, pp. 209-211):

São Paulo, como se costuma dizer, tem tudo o que você precisa procurar. Entre os serviços mais incomuns que esta cidade tem a oferecer estão os de um padre católico europeu recentemente imigrado, cujo trabalho consiste principalmente em exorcizar espíritos negativos e geralmente lutar contra a magia negra com o que parece ser os métodos espirituais convencionais. Não vou revelar o nome dele aqui, porque acho que o coitado já tem problemas demais com seus superiores. O Padre Carlos, como o chamarei, mantém consultas regulares na sua igreja, acolhendo membros de todas as religiões que correm a centenas para expor os seus problemas. Eles geralmente têm uma lista de reservas de seis semanas. Em vez de ouvir no confessionário e prescrever algumas ave-marias, ou um pai nosso, padre Carlos arregaça as mangas e vai com espírito de luta entre os espíritos malignos. Ele transmite “passes” magnéticos (?) A seus visitantes de acordo com os textos espiritualistas e, em casos extremos, vai à casa deles para expulsar as entidades mais tenazes.

Ele não é o primeiro padre católico que tenta combater as manifestações menos desejáveis do mundo espiritual. De fato, um de seus predecessores mais conhecidos, o padre Bonaventura Kloppenburg, liderou uma vigorosa campanha por vários anos para erradicar completamente o espiritismo.

Homem inteligente e fundamentalmente bom, Kloppenburg se deu ao trabalho de estudar o assunto a fundo e escreveu quatro volumes volumosos sobre o espiritismo. Infelizmente para ele, logo após a publicação de seus livros, houve uma reviravolta dramática no grupo do Vaticano depois que o Papa Paulo VI decidiu em sua Carta Apostólica “Africae Terrarum” (1967) que poderia haver algo de bom nisso, afinal, ritos primitivos e “não-cristãos“. Então não lamentamo-nos de Bergoglio, ele simplesmente está copiando dos seus antecessores!

Por mais surpreendente que possa parecer, a Igreja de Roma persiste em considerar TODAS as formas de espiritismo como pagãs, apesar do fato de que os kardecistas não reconhecem nenhuma fonte de inspiração além de Jesus Cristo, e muitas vezes agem como se estivessem do outro lado da linha. diretamente ligado a Ele. Como resultado, Kloppenburg disse ao autor David St Clair que ele tinhanovas funções“, que ocupavam quase todo o seu tempo. Ele também admitiu que havia visto muitas coisas durante seus dez anos de pesquisa sobre o espiritismo que não conseguia explicar. Desde então, ele se fechou em silêncio, ou o obrigaram ao silêncio!

Uma abordagem um pouco diferente foi conduzida por seu sucessor mais ilustre da batalha perdida pelos católicos contra o espiritismo, naturalmente sempre um jesuíta espanhol chamado Oscar Gonzalez Quevedo que se tornou um parapsicólogo e fundou um instituto conhecido pelas iniciais CLAP (Concilio Latino American de Parapsicologia ) Quevedo, cujas atividades principais eram ganhar dinheiro e buscar publicidade, tem se dedicado a confundir grande número de pessoas com seus intermináveis livros, artigos em revistas, aparições na TV e cursos pseudo parapsicológicos, nos quais buscava continuamente desacreditar o espiritualismo de cirurgia psíquica (curandeiros que realizam operações cirúrgicas precisas com as próprias mãos) para a reencarnação. Muitas de suas visões são idiotas demais para repetir aqui, e sua popularidade no Brasil se deve ao seu único talento verdadeiro, o de fazer truques.

Deve-se dizer, aliás, que os espíritas nunca atacam abertamente a Igreja Católica, apesar da considerável provocação do Padre Quevedo, que a trata com uma tolerância que certamente não merece. No íntimo, muitos espíritas kardecistas sentem que a igreja de Roma está se desintegrando em todos os sentidos, enquanto eles se fortalecem e não precisam perder tempo com os católicos.

Padre Carlos, o exorcista, é típico de uma pequena minoria de padres católicos brasileiros mais realistas, que estão bem cientes da existência de espíritos negativos e tentam fazer algo a respeito, sem achar necessário envolver toda a estrutura do espiritismo no processo.

Embora o autor não faça nenhum esforço para se mostrar objetivo e esconder sua simpatia pelo espiritismo e antipatia pelo catolicismo, permanece o problema levantado por padres como o franciscano alemão Bonaventura Kloppenburg (1919-2009), nomeado bispo de Novo Hamburgo. em 1986, que dedicou grande parte de sua energia ao combate ao espiritismo, enquanto padres mais jovens, como o padre Carlos (nom de plume escolhido pela Playfair), não hesitam em usar o espiritismo para realizar exorcismos e ritos de libertação de forma profunda marcado pela presença de magia negra. Na verdade, existem milhares e talvez milhões de casos, de casos mal-assombrados e de obsessão e possessão de espíritos, que em termos cristãos são simplesmente chamados de diabólicos, então o problema surge necessariamente: é permitido e em que medida, para um sacerdote Católico, lutar contra os espíritos usando as técnicas do espiritismo? Olhando mais de perto, este é um caso muito particular de um problema muito mais amplo, que remonta no tempo, pelo menos ao século XVII, quando os Jesuítas, na Ásia, levantaram a questão dos ritos chineses e ritos do Malabar, nomeadamente a oportunidade de usar o sistema cultural e religioso indígena para facilitar o trabalho de evangelização; (ver os artigos Os Jesuítas e o Tao: é sempre o mesmo esquema, publicado no site da Accademia Nuova Itália em 23/02/19; Raízes psicológicas e culturais do neo-primitivismo, em 25/11/19; e Pachamama ou as fontes do indigenismo jesuíta, 12/08/19). Na concepção espiritualista, saúde e doença, sucesso e fracasso no amor ou nos negócios vêm do mundo dos espíritos, entidades desencarnadas que são, na maioria das vezes, homens ou mulheres mortas que continuam a rondar o mundo dos vivos. para algum propósito particular ou simplesmente para interferir, para melhor ou para pior, na dimensão dos vivos. O Brasil é tão impregnado por essa crença que escritores e diretores dão como certo, enquanto no exterior não: isso explica a dificuldade, para o público não brasileiro, de entender um romance, ou um filme, como Donna Flor e seus dois maridos, sendo que para um italiano ou um francês a história do amante fantasma da protagonista, e o do falecido primeiro marido Vadinho, que vem tentar, um amante bem-vindo, para a sua ex-mulher, certamente aparece como um artifício original fantástico, enquanto um brasileiro sabe perfeitamente do que estamos falando, porque neste país se considera possível, e talvez até frequente, que uma pessoa viva possa ter relações sexuais com um espírito desencarnado. Relações nem sempre bem-vindas como na obra de Jorge Amado: daí a necessidade de recorrer a ritos de libertação que só podem ser praticados por médium espíritas kardecianos ou pelo padre, umbanda ou macumba. Daí, eis a oportunidade para alguns padres católicos de fazer “ecumenismo”, de entrar em campo e mostrar que também eles sabem realizar com sucesso um exorcismo: e a tentação de fazê-lo não segundo o rito da Igreja Católica, mas segundo as técnicas locais, talvez para se mostrar mais próximo à mentalidade indígena. No entanto, o risco de tal forma de enculturação é evidente, tal como no caso dos ritos chineses de quatro séculos atrás, quando os jesuítas queriam “capturar” os chineses, mas hoje são os jesuítas que foram capturados por eles. De qualquer forma, como esquecer que não existe magia branca, mas que magia é sempre negra, já que os espíritos convocados não são Anjos, mas entidades completamente diferentes?