Carta de uma amiga!

carta de uma amiga

Um amigo da minha família, que foi um político respeitável na época, é hoje um paciente com câncer. Poucos meses o separam da morte. Ele os passará em Milão, no prédio onde eu também morei, com seus três filhos, Francesco, Rita e Laura – que pouco conhece e que pouco o conhecem – entre a casa e o hospital, entre as lembranças da juventude, lamentações, remorsos, ilusões, alucinações e amargas esperanças.

É Rita que me escreve sobre isso que, em primeira pessoa, vivencia o drama da separação e a dor da perda, e recolhe – enquanto o pai vê uma de suas funções vitais esmaecer a cada dia – pensamentos intensos que se assemelham não tanto a um memorial quanto a um concentrado de emoções, a uma centrífuga de sentimentos que se refletem nos grandes temas da existência: a doença – sombria, monstruosa, mas tão real – é instrumental para refletir, sobretudo, sobre a passagem do tempo. Como recuperar oportunidades e dias perdidos diante do fim inevitável que lentamente se aproxima?

pacienteRita escrevendo-me, percebo que está comovida, mas também ousada e chateada ao mesmo tempo. Ela escreve a mim no Brasil porque sou sacerdote, embora ela não seja católica praticante. Conta-me sobre a (re)descoberta de um pai em seu momento mais sombrio, descrevendo uma relação parental inversa (o pai se torna a criança a ser cuidada, enquanto Rita e seus irmãos são as mães e pais que têm que curar, aliviar a dor e a tristeza); é descarada porque joga a dureza da doença na cara de todos e o faz da forma menos hipócrita que existe, sublinhando, sem qualquer tipo de adoçamento, todas as fases do sofrimento (da perda da memória à da fala) e enfim, me chateia porque me faz reviver situações passadas: minha mãe que morreu de leucemia fulminante, meu pai que morreu de câncer ósseo, minha madrinha que morreu perdendo a consciência e a qual nem pude dizer “te amo”, me obrigando a repensar como poderia ser meu futuro próximo.

Para iluminar – é a palavra certa? – a tensão emocional é o mistério que a atravessa. O pai escondeu da família por muito tempo um segredo devido ao divórcio com a mãe de seus filhos.  Ele logo se separou, deixando-a em Roma para se mudar para Milão. Em todo o caso, tirando o suspense que surge da vontade de compreender o que esconde o passado deste homem importante na vida social e política, o que mais me impressiona na carta de Rita é esta verdade ensurdecedora e muito crua: “Nós nos conhecemos realmente pai? (…). Será que algum dia iremos nos conhecer como eu gostaria?”.

No pouco tempo que resta Rita, em nome de todos os filhos do mundo, se pergunta sobre a vida dele (“Eu o abandonei e nada mais, durante anos o deixei aqui sozinho, na sua toca de depressão onde ele se iludiu sobre estar bem. E eu também, por conveniência e nada mais, tinha a ilusão de estar bem”). Isso porque, se é verdade que os filhos são a extensão dos pais, são os livros que leram, os filmes que assistiram e as experiências que viveram, eles devem aprender a se conhecer. Quantos momentos Rita não cultivou para conhecer melhor o pai e, portanto, uma parte de si mesma?

Poderia, por conseguinte, representar um convite a não perder tempo, para vocês que me estão lendo, um convite a se apressar para conter o maior número possível de multidões agora para animar seus entes queridos, para que, um dia, vivam, persistam em sua vida cotidiana. Rita me escreve, padre Eugenio, “vejo seus olhos aterrorizados, e eles são os meus”, “Ele é mãos e eu sou barro”, uma bela imagem nos laços, nas raízes, na família, no ‘grande nós’.

Existe, novamente, a coragem de chamar as coisas pelo próprio nome em O grande eu. Enquanto os outros falam de festas, fazem “fofocas inúteis” e ficam “todos tirando fotos”, têm pavor de conhecer o mal, “de espreitar pela fresta” e, por isso, não resistem, não apoiam, não intervêm. Quem está do lado de fora, quem não vivencia a doença na própria pele, tira os olhos do paciente, não aceita, quase sente nojo, repulsa e se afasta. “A senhora da nossa frente levanta-se e muda de lugar, não quer sentar-se ao lado de um doente. A jaqueta e a calça amassadas, no agasalho tem uma mancha branca, não sei o que é, porque não me lembro da última vez que meu pai comeu. Suas unhas, aquelas que ele não corta mais, são para mim apenas os seus dedos sensíveis, mas para a senhora da porta ao lado representam uma desordem que não pode ser aceita. Se ao menos soubesse sobre injeções de insulina, injeções de heparina, comprimidos de pressão, enzimas pancreáticas, antiespasmódicos, analgésicos, transporte de ida e volta do hospital e quimioterapia inútil, com um cansaço que é de quem não tem mais confiança, as pausas para respirar nos corredores do hospital, a garrafa a ser limpa, o tubo na artéria carótida, a ferida a ser desinfetada, o estômago a ser reabastecido com relutância, a moral para se animar, a cada segundo, o esforço de ter que rir, espanto por ainda poder fazer isso. Se a senhora da porta ao lado soubesse, talvez ela aceitasse aquelas unhas. Ela entenderia que não temos tempo, às vezes não temos força para pensar nisso. Ele percebe que a mulher mudou de lugar lançando lhe um olhar de desaprovação, o seu rosto contrai-se ligeiramente, mas está cansado até para sofrer”.

É uma etapa que deve ser mantida em mente. Ela o escreveu com sinceridade, na carta que me enviou, na qual fala sobre a vida e a morte, e na qual volta a falar sobre as relações familiares. A narração Não tenho tempode Rita consegue me ensinar uma lição de humanidade. Uma forma de respeitar quem “parece uma criança que vê a neve pela primeira vez, mas é um homem que a vê pela última vez e sabe disso”.

Queridos amigos, não é uma história simples, o que estou compartilhando com vocês é a dura realidade da vida que nos cerca e que não queremos ver. Mas a morte chega para todos com ou sem corona vírus e o que importa nesses momentos é como passamos nossa existência.

Para você que está lendo, Deus está dando outra chance, não a deixe escapar.